Arte: Bernardes Paixão
Ser
figurante é ser um nada. Na arte é como um velho mendigo na rua. Invisível. Como este, tem sempre ao
seu lado um fiel cãozinho de guarda que o acompanha na jornadas figurantes. Os
figurantes são como trabalhadores em cemitérios de navios ou de homens, bem
como, garimpeiros nas profundezas da floresta. E sem figurantes, como seria a
arte, a vida e até a morte?
Gosto
de lembrar do Carlos, amigo figurante que me trouxe pra cá, pra ser figurinista
das produções artísticas da Companhia. Conheci o Carlos em um jogo na baixada
news. Já estou neste ofício há mais de 12 anos. Carlos ficou bem mais que eu,
acho que uns 30. Quanto mais velhos os figurantes, menores oportunidades,
até a troca inevitável por veias novas, sem o risco de adoecer ou mesmo não vir
ao trabalho. Carlos passou a vida inteira sendo figurante. Ninguém sabe
a vida que o Carlos tinha: morava no morro dos perdizes, o mais barra pesada e
o mais esquecido dos morros do Brasil. Saia cedo de seu casebre, descia
sorrindo a baixada como se fosse o escolhido para ser o protagonista da novela,
pulava a viela de esgoto próximo a avenida central, cumprimentava Dona Celina,
benzedeira da comunidade e esperava o primeiro de uma saga de 4 ônibus, até
chegar no local/estúdio de gravação. Lembro do dia em que ele, em um almoço
comigo, me disse: "...a gente tão perto de pessoas tão famosas e ricas, conhecidas
até internacionalmente, figuras carimbadas em revistas e canais de
televisão...outro dia vi a matéria do Carlos Zappa ( ator que ficava próximo
nas suas figurações) em que mostrava a mansão e o carro importado dele lá no
Morumbi...é muito estranho, pra não dizer outra coisa, eu tão perto do Carlos e
ele tão perto de mim aqui no trabalho, mas tão distantes na vida". Carlos
Zappa não nota nem filho, muito menos você - dizia pra ele.
Depois
de alguns anos Carlos foi dispensado por justa causa (incompreensível), sem direitos diante do tempo de serviço, retirado por seguranças da
companhia no mesmo dia desta decisão, humilhado na saída como um fantasma que
há décadas apresentava sua carteirinha figurativa na entrada do salão.
Durante
dias, depois da decisão, ainda descia o morro da mesma maneira: feliz e
animado, pulando esgotos, cumprimentando a benzedeira, pegando 4 ônibus até a
chegada na companhia, onde esperava ser de novo aceito, mas era proibido de
adentrar, ficando como um cachorro dengoso chorando em frente ao portão.
Carlos,
o do Morro, foi ser figurante no céu ao se jogar na frente do carro importado de
Carlos Zappa, quando este saia de um dia de gravações. Foi a primeira vez que
ele havia ido com o luxuoso importado para o trabalho. Testemunhas que viram o
acidente disseram que a vítima se jogou a frente do carro e que acenava com as
mãos como um velho conhecido exilado. Outros figurantes se juntavam ao pé do
corpo de Carlos, enquanto o ator avisava aos organizadores do evento publicitário,
que começaria em poucos minutos, o ocorrido. Ao ver amassado o capô do
carro, indagou ao morto: maldito transeunte!!
(Leo Canaã)
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