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17 de mai. de 2012

A mulher do Pinduca

Pintura: Paula Rego


Uma mulher vem chegando rapidamente, tropeçando na esburacada rua, esbarrando nas pessoas no calçadão popular, com lágrimas escorrendo em um dos olhos já que o outro, o esquerdo, o inchaço causado por uma pancada fizeram com que as lágrimas ficassem estancadas como água de represa prestes a estourar. No caminho que faz até o Bar do Pinduca, que é seu marido, percebe-se que fala coisa com coisa, xinga, promete vingança e até lembra da sua mãe (que também tinha cotidiano marcado pelas barreiras impostas não somente aos olhos). Para as pessoas do bairro, que imediatamente se atentaram para o que estava ocorrendo, a cena de uma mulher na rua aos prantos sempre foi incomum, mesmo que, soubessem, que no escuro da noite e no dia de qualquer ódio, isto fazia parte da rotina desta e de outras mulheres. Aquele momento era o momento da libertação, do cansaço e do fim da escravidão e do medo. Assim, por onde ela passava, as pessoas acompanhavam-na timidamente atrás de seus passos, sabedoras estas que estavam diante de um caso grave ocorrido. E o povo querendo fuxico. Poucas ou nenhuma destas pessoas estavam preocupadas com alguma justiça a ser feita. Queriam mesmo é ver a desgraça alheia sendo telespectadores de sua sutil tirania.
A mulher, agora a poucos passos da entrada do bar, percebeu que não sabia o que ali iria fazer, o que falar. Era como se estivesse sonhando e neste momento tomasse consciência dos fatos ali e agora. Parou a 100 metros da porta, na calçada do outro lado da rua. As pessoas falavam baixo e discretamente. Dois homens, inclusive, apostaram uma rodada de cerveja sob o resultado do confronto e independente do ganhador, a cerveja seria tomada no bar do Pinduca com o próprio dono do estabelecimento.
A mulher, ainda parada, com a respiração agitada, parecia agora presa nos pensamentos contraditórios; de um lado, o ódio derramado pelo estouro de uma represa e, de outro, o medo, não só das pancadas , mas  de ser deixada ao léu, como uma mendiga de um dia para a noite, já que não tinha dinheiro nem ocupação. Indagou-se sobre o amor que sentia pelo marido. Não sabia responder. Vieram muitas lembranças do rio corrente da memória: o namoro na adolescência, o primeiro beijo, o casamento e o nascimento do filho, as surras de chicote, os socos na cara, a perseguição, os murros na porta trancada, a violência do mundo nos punhos daquele pobre homem. O amor não foi suficiente. Os anos de violência pesaram. Ela estava ali; machucada, duvidosa, ferida, carente e cansada em frente ao bar. 
Ainda sem saber a decisão a ser tomada foi surpreendida por um grito de alguém estimulando-a a partir para cima, fazer alguma coisa. No mesmo instante, sem ela perceber, o marido já estava bem a sua frente. Esperou alguma ação por parte da mulher, mas nada acontecia. Nele havia uma raiva por ela ter publicamente mostrado o que acontecia em  casa.
Esperou mais um pouco e nada. Os olhares dos dois diziam claramente o que estava contido nos pensamentos de cada um, numa troca de confidências sincera, como outra não poderia ser.  O olhar da mulher foi se mostrando como um misto de pena, dó, tristeza ao ver aquele homem com quem dividiu tantos anos de sua vida.  O público, a espera, ansioso por alguma ação que provocasse uma adrenalina, coçava a cabeça e mordiam as unhas. O público vaiava como um torcida. Alguns tiravam fotos, outros xingavam os jogadores.
Nesse nem chove nem molha, Pinduca tomou a frente e se ela ficasse calada ou ele pedisse desculpas mais uma vez, provavelmente a sua mulher, baixaria a cabeça, envergonhada, e voltaria calada para a casa, possivelmente faria o jantar do marido como sempre fez, tomaria um  banho, limparia o machucado e, como em todas as outras brigas, fariam amor ao se deitar.
Mas, Pinduca fez diferente. Ao chegar em frente a mulher, seus olhos demonstravam o ódio causado pela exposição no bairro e a afronta dela em ir  tirar satisfação. Ele agarrou fortemente um dos braços dela e disse rosto com rosto:
- O que cê veio fazer aqui mulher? Veio me afrontar é sua... ? Não tá vendo que todo mundo tá vendo você desse jeito, todos os clientes do bar.  Quer me denunciar pra polícia? Pois hoje, depois do expediente, você vai me esperar em casa, no quarto, de banho tomado,  porque  você vai aprender a não me desafiar, nunca mais, nunca mais... Cada lugar do teu corpo terá uma marca.

Após terminar a frase, imediatamente após a última frase, ele soltou o braço da mulher. Ela fixou um olhar de estranha frieza. E, enquanto o marido falava a última frase "...Cada lugar do teu corpo terá um marca"  levemente observou  a rua cheia de carros e retornou a olhar para o marido ao fim da frase. Mirava-o, naquele momento não se lembrava de nenhuma bondade do marido, dos tempos de romantismo, do nascimento do filho, em nada. Mirava-o e calmamente disse no fundo dos seus olhos " Você nunca mais vai encostar um dedo em mim e em ninguém seu desgraçado. Vai pro inferno".
Pinduca não teve nem tempo de responder. A mulher, maliciosamente, avistou a vinda de um ônibus circular na avenida e com os dois braços, empurrou o marido que estava sobre o meio fio da rua. O choque foi inevitável. Pinduca foi arremessado por vários metros e teve morte instantânea no local. A mulher, ficou ali, imóvel e estática no lugar que atirou o marido. Foi levada alguns minutos após para a delegacia.
Os dois homens da aposta, logo após a retirada do corpo, foram beber a cerveja apostada no bar concorrente do Pinduca.  Lá lembravam os fatos ocorridos e relatavam o caso como se fossem comentaristas de segurança, além de dizer da vida e morte, dos podres e dos goles, dos sambas e dos torresmos com mandioca do falecido Pinduca. Também diziam ao Jonas, proprietário do concorrente, que este assumiria a freguesia do bairro e cresceria proporcionalmente. A notícia deu em vários jornais e canais televisivos. Fotos e imagens de celular foram compradas e mostradas em primeira mão.