Foto: N/A
Em um início de divã,
Fátima retira do bolso da calça um pedaço de papel e inclinando a cabeça
levemente para a esquerda, onde estava seu médico terapeuta, diz secamente – “Hoje vou ler meu escrito diário e será só
isso a sessão”. O médico, sem nada dizer, olhando para baixo, balança a
cabeça positivamente à paciente, que imediatamente começa a leitura.
“Queria
estudar, enlouqueci. Queria amar, sofri. Queria voar, submergi. Que quentura
ainda existe nessas veias? Que calor, oh senhor, será capaz de iluminar as
trevas e os curdos? Quais os planos de conquista, acumulação para amanhã?
Queria
sonhar, violentaram-me e sorri. Queria tocar o céu, desisti de Deus. E agora,
púrpura, já consigo sair de casa, escovar os dentes, responder aos recados de
amigos e vendedores, pegar no sono, ver os infernais, passear por Paraisópolis
e trocar três contos com qualquer alma viva ou morta.
Mas,
que aventura pode existir depois da curva da monotonia? Logo advém de graça,
como uma cobertura de um sorvete, o pavor, oh senhor, o pavor da dúvida, de ser
capaz de relativizar mais uma vez ás pressas, quitar os juros de empréstimo
para usar minha HP-12 C, as metas a serem dominadas e reembolsadas em minha
conta e que não levarei para minha cova e uma gama enorme de pessoas sofridas
(e muito) pelas calçadas do mundo.
Queria
tocar o céu, e agora púrpura, feliz por levantar da cama, comer ovos mexidos, o
café enviado de minas, o cigarro aceso, o rapé, o cabaré e a grana do contrato...
tudo de forma objetiva, escalonaria e obsessiva: no melhor jeito de ser humano!
Queria
encontrar os olhos do meu médico, nestes 5 anos em que toda a semana, uma vez
por semana, tenho que pegar três ônibus e cruzar esta cidade maldita, na
esperança ridícula de que algum dia iremos ter o encontro mágico dos olhos! Quem
precisa de tratamento? Estou curada, isso mesmo, já estou curada. Já consigo
sorrir e ser cordial com todos, principalmente com meus agressores. Não tem uma
frase mais ou menos assim, de que, quem é feliz é aquele que engana a si mesmo?”.
Ao terminar a leitura,
Fátima se levantou, olhou predestinadamente para a porta sem atentar-se para o médico,
abriu a mesma sem fechar, deixando os raios do sol de primavera adentrar com
sua tonalidade lilás pela vidraça cristalina da antessala, enquanto o médico,
preso a um caderno ou uma leitura em sua cadeira confortável, mexia rapidamente
os óculos e dava um leve sorriso, com a cabeça inclinada para baixo, atento ao que via ou lia, até que pelo aparelho telefônico, falou para sua assistente: Quem é o próximo?
(LEO CANAÃ)
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