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21 de fev. de 2020

Púrpura Íntegra

Foto: N/A

Em um início de divã, Fátima retira do bolso da calça um pedaço de papel e inclinando a cabeça levemente para a esquerda, onde estava seu médico terapeuta, diz secamente – “Hoje vou ler meu escrito diário e será só isso a sessão”. O médico, sem nada dizer, olhando para baixo, balança a cabeça positivamente à paciente, que imediatamente começa a leitura.

“Queria estudar, enlouqueci. Queria amar, sofri. Queria voar, submergi. Que quentura ainda existe nessas veias? Que calor, oh senhor, será capaz de iluminar as trevas e os curdos? Quais os planos de conquista, acumulação para amanhã?
Queria sonhar, violentaram-me e sorri. Queria tocar o céu, desisti de Deus. E agora, púrpura, já consigo sair de casa, escovar os dentes, responder aos recados de amigos e vendedores, pegar no sono, ver os infernais, passear por Paraisópolis e trocar três contos com qualquer alma viva ou morta.
Mas, que aventura pode existir depois da curva da monotonia? Logo advém de graça, como uma cobertura de um sorvete, o pavor, oh senhor, o pavor da dúvida, de ser capaz de relativizar mais uma vez ás pressas, quitar os juros de empréstimo para usar minha HP-12 C, as metas a serem dominadas e reembolsadas em minha conta e que não levarei para minha cova e uma gama enorme de pessoas sofridas (e muito) pelas calçadas do mundo.
Queria tocar o céu, e agora púrpura, feliz por levantar da cama, comer ovos mexidos, o café enviado de minas, o cigarro aceso, o rapé, o cabaré e a grana do contrato... tudo de forma objetiva, escalonaria e obsessiva: no melhor jeito de ser humano!
Queria encontrar os olhos do meu médico, nestes 5 anos em que toda a semana, uma vez por semana, tenho que pegar três ônibus e cruzar esta cidade maldita, na esperança ridícula de que algum dia iremos ter o encontro mágico dos olhos! Quem precisa de tratamento? Estou curada, isso mesmo, já estou curada. Já consigo sorrir e ser cordial com todos, principalmente com meus agressores. Não tem uma frase mais ou menos assim, de que, quem é feliz é aquele que engana a si mesmo?”.

Ao terminar a leitura, Fátima se levantou, olhou predestinadamente para a porta sem atentar-se para o médico, abriu a mesma sem fechar, deixando os raios do sol de primavera adentrar com sua tonalidade lilás pela vidraça cristalina da antessala, enquanto o médico, preso a um caderno ou uma leitura em sua cadeira confortável, mexia rapidamente os óculos e dava um leve sorriso, com a cabeça inclinada para baixo, atento ao que via ou lia, até que pelo aparelho telefônico, falou para sua assistente: Quem é o próximo?                                                                                                             
 (LEO CANAÃ)                                                 

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