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14 de jun. de 2019

Os Ombros Suportam o Mundo

Pintura: Diego Rivera

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
tempo de absoluta depuração.
tempo em que não se diz mais: meu amor
porque o amor resultou inútil.
e os olhos não choram.
e as mãos tecem apenas o rude trabalho.
e o coração está seco.

Em vão mulheres batem á porta, não abrirás.
ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
és todo certeza, já não sabes sofrer.
e nada espera de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
e ela não pesa mais que a mão de uma criança.
as guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
chegou um tempo que não adianta morrer.
chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
a vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade ''Os Ombros Suportam o Mundo'' do Livro "Sentimento do Mundo")

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