Bolsonaro e sua penetração na banda podre das classes populares foi útil
para vencer o PT, mas é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar com
ele é literalmente impossível.
A eleição de Jair Bolsonaro foi um
protesto da população brasileira. Um protesto financiado e produzido pela elite
colonizada e sua imprensa venal, mas, ainda assim, um "protesto". Uma
sociedade empobrecida – cheia de desempregados, de miseráveis e violência
endêmica, cujas causas, segundo a elite e a grande imprensa que a mantém, é
apenas a "corrupção política" – elege o mais nefasto político que os
500 anos de história brasileira já produziu. Segundo a imprensa comprada, a
corrupção é, inclusive, culpa do PT e de Lula manipulando a informação e
criando uma guerra entre os pobres. Sem compreender o que acontece, a sociedade
como um todo é manipulada e passa a agir contra seus melhores interesses.
A única classe social que entra no
jogo sabendo o que quer é a elite de proprietários. Para a elite, o que conta é
a captura do orçamento público via "dívida pública" e juros
extorsivos, e ter o Estado como seu "banco particular" para encher o
próprio bolso. A reforma da previdência é apenas a última máscara desta
compulsão à repetição. Mas as outras classes sociais, manipuladas pela elite e
sua imprensa, também participaram do esquema, sempre "contra" seus
melhores interesses.
A classe média real entrou em peso no
jogo, como sempre, contra os pobres para mantê-los servis, humilhados e sem
chances de concorrer aos privilégios educacionais de que desfruta. Os pobres
entraram no jogo parcialmente, o que se revelou decisivo do ponto de vista
eleitoral, pela manipulação de sua fragilidade e pela sua divisão proposital
entre pobres decentes e pobres "delinquentes". Esses dois fatores juntos,
a guerra social contra os pobres e entre os pobres, elegeram Bolsonaro e sua
claque.
Foi um protesto contra o progresso
material e moral da sociedade brasileira desde 1988 e que foi aprofundado a
partir de 2002. Estava em curso um processo de aprendizado coletivo raro na
história da sociedade brasileira. Como ninguém em sã consciência pode ser
contra o progresso material e moral de todos, o pretexto construído, para
produzir o atraso e mascará-lo como avanço, foi o pretexto, já velho de cem
anos, da suposta luta contra a corrupção. Sérgio Moro incorporou esta farsa
canalha como ninguém.
A "corrupção política",
como tenho defendido em todas as oportunidades, é a única legitimação da elite
brasileira para manipular a sociedade e tornar o Estado seu banco particular. A
captura do Estado pelos proprietários, obviamente, é a verdadeira corrupção
que, inclusive, a "esquerda" até hoje, ainda sem contradiscurso e sem
narrativa própria, parece não ter compreendido.
Agora, eleição ganha e Bolsonaro no
poder, começam as brigas intestinas entre interesses muito contraditórios que
haviam se unido conjunturalmente na guerra contra os pobres e seus
representantes. Bolsonaro é um representante típico da baixa classe média
raivosa, cuja face militarizada é a milícia, que teme a proletarização e,
portanto, constrói distinções morais contra os pobres tornados
"delinquentes" (supostos bandidos, prostitutas, homossexuais, etc.) e
seus representantes, os "comunistas", para legitimar seu ódio e
fabricar uma distância segura em relação a eles.
Toda a sexualidade reprimida e todo o
ressentimento de classe sem expressão racional cabem nesse vaso. O seu
anticomunismo radical e seu anti-intelectualismo significam a sua ambivalente
identificação com o opressor, um mecanismo de defesa e uma fantasia que o livra
de ser assimilado à classe dos oprimidos. Olavo de Carvalho é o profeta que deu
um sentido e uma orientação a essa turma de desvalidos de espírito.
É claro que Bolsonaro é um mero
fantoche ocasional das elites brasileira e americana. Quando ele volta de mãos
vazias dos Estados Unidos, depois de dar sem qualquer contrapartida o que os
americanos nem sequer tinham pedido, a única explicação é que ele estava lá
como sujeito privado e não como presidente de um país. Como sujeito privado, é
bem possível que ele estivesse pagando, com dinheiro e recursos públicos, os
gastos de campanha até hoje secretos e sem explicação. Mas é óbvio que sua
campanha foi feita e muito provavelmente financiada pelos mesmos que fizeram e
bancaram a campanha de Trump.
O seu discurso de ódio era o único
remédio contra a volta do PT ao poder. E como a elite e sua imprensa querem o
saque do povo, e para isso se aliam até ao diabo, ou pior, até a Bolsonaro, sua
escolha teve este sentido. O ódio, por sua vez, é produzido pela revolta de
quem não entende por que fica mais pobre e a única explicação oferecida pela
imprensa venal é o eterno "bode expiatório" da corrupção política.
Mas a corrupção política era a forma, até então, como se manipulava a falsa
moralidade da classe média real. Como se chega com esse discurso manipulador
também nas classes baixas? O voto da elite e da classe média no Brasil não
ganha eleição nenhuma. Este é um país de pobres.
A questão interessante passa a ser
como e por que setores das classes populares passaram a seguir Bolsonaro e
permitiram sua eleição. Para quem Bolsonaro fala quando diz suas maluquices e
suas agressões grosseiras? Ele fala, antes de tudo, para a baixa classe média
iletrada dos setores mais conservadores do público evangélico. Este público que
ganha entre dois e cinco salários mínimos é um pobre remediado que odeia o mais
pobre e idealiza o rico. O anticomunismo, por exemplo, tem o efeito de irmanar
este pobre remediado com o rico, já que é uma oportunidade de se solidarizar
com o inimigo de classe que o explora e não com seu vizinho mais pobre com quem
não quer ter nada em comum. Isso o faz pensar que ele, em alguma medida, também
é rico – ou em vias de ser –, já que pensa como ele.
O anti-intelectualismo também está em
casa na baixa classe média. Isso é importante quando queremos saber a quem
Bolsonaro fala quando ataca, por exemplo, as universidades e o conhecimento. A
relação da baixa classe média com o conhecimento é ambivalente: ela inveja e
odeia o conhecimento que não possui, daí o ódio aos intelectuais, à
universidade, à sociologia ou à filosofia. Este é o público verdadeiramente
cativo de Bolsonaro e sua pregação. É onde ele está em casa, é de onde ele
também vem. Obviamente esta classe é indefesa contra a mentira
institucionalizada da elite e de sua imprensa. Ela é vítima tanto do ódio de
classe contra ela própria, que cria uma raiva que não se compreende de onde
vem, e da manipulação de seu medo de se proletarizar. Quando essas duas coisas
se juntam, o pobre remediado passa a ser mais pró-rico que o Dória.
A escolha de Sérgio Moro foi uma
ponte para cima com a classe média tradicional que também odeia os pobres,
inveja os ricos e se imagina moralmente perfeita porque se escandaliza com a
corrupção seletiva dos tolos. Mas, apesar de socialmente conservadora, ela não
se identifica com a moralidade rígida nos costumes dos bolsonaristas de raiz,
que estão mais perto dos pobres. Paulo Guedes, por sua vez, é o lacaio dos
ricos que fica com o quinhão destinado a todos aqueles que sujam as mãos de
sangue para aumentar a riqueza dos já poderosos.
Os primeiros meses de Bolsonaro
mostram que a convivência desses aliados de ocasião não é fácil. A elite não
quer o barulho e a baixaria de Bolsonaro e sua claque, que só prejudicam os
negócios. Também a classe média tradicional se envergonha crescentemente do
"capitão pateta". Ao mesmo tempo, sem barulho nem baixaria Bolsonaro
não existe. Bolsonaro "é" a baixaria. Sérgio Moro, tão tolo,
superficial e narcísico como a classe que representa, é queimado em fogo
brando, já que o Estado policial que almeja, para matar pobres e controlar
seletivamente a política, em favor dos interesses corporativos do aparelho
jurídico-policial do Estado, não interessa de verdade nem à elite nem a seus
políticos. Sem a mídia a blindá-lo, Sérgio Moro é um fantoche patético em busca
de uma voz.
O resumo da ópera mostra a
dificuldade de se dominar uma sociedade marginalizando, ainda que em graus
variáveis, cerca de 80% dela. Bolsonaro e sua penetração na banda podre das
classes populares foi útil para vencer o PT, mas é tão grotesco, asqueroso e
primitivo que governar com ele é literalmente impossível. A idiotice dele e de
sua claque no governo é literal no sentido da patologia que o termo define.
Eles vivem em um mundo à parte, comandado pelo anti-intelectualismo militante,
o qual não envolve apenas uma percepção distorcida do mundo. O idiota é também
levado a agir segundo pulsões e afetos que não respeitam o controle da
realidade externa. Um idiota de verdade no comando da nação é um preço muito
alto até para uma elite e uma classe média sem compromisso com a população nem
com a sociedade como um todo. Esse é o dilema do idiota Jair Bolsonaro no
poder.
*Jessé Souza é sociólogo,
professor universitário, pesquisador e escritor brasileiro. Autor de os best-sellers
"A Elite do Atraso" e "A Classe Média no Espelho".
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