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31 de out. de 2018

O deus do homem vivo

Foto: Jose Antoine Costa

“...Dizem que os filósofos e os sábios autênticos são indiferentes. Não é verdade, a indiferença constitui uma paralisia da alma, a morte prematura.
Torno-me a deitar e começo a conjeturar sobre os pensamentos com que poderia ocupar-me. Pensar em quê? Parece que já pensei em tudo e não há nada capaz de suscitar agora o meu pensamento.
Quando amanhece, estou sentado na cama, abraçando os joelhos, e, não tendo o que fazer, procuro conhecer a mim mesmo. “Conhece-te a ti mesmo” – eis um belo e útil conselho; dá pena, porém, que os antigos não tenham adivinhado como indicar o meio de utilizá-lo.
Quando, em outros tempos, me dava na veneta compreender alguém ou a mim mesmo, eu examinava não as ações, em que tudo é convencionado, mas os desejos. Dize-me o que desejas, dir-te-ei quem és.
Também, agora, faço um exame a mim mesmo: o que eu quero?
Quero que nossas esposas, filhos, amigos, alunos, amem em nós não o nome, a firma, a etiqueta, mas a pessoa comum. E o que mais? Eu gostaria de ter auxiliares e herdeiros. E o que mais? Gostaria de acordar daqui uns cem anos e espiar, ao menos com um olho, o que será da ciência. Gostaria de viver mais uns dez anos... e mais o quê?
Mais nada. Penso, fico muito tempo pensando, e não consigo inventar mais nada. E por mais que eu pense, onde quer que se espalhem meus pensamentos, é evidente para mim que em meus desejos falta algo essencial, algo muito importante. No meu fraco pela ciência, no meu desejo de viver, neste ato de ficar sentado numa cama alheia e na ânsia de conhecer a mim mesmo, em todos os pensamentos, sentimentos e concepções, que eu formo a respeito de tudo, não existe algo geral, que una isso num todo. Cada sentimento e pensamento vivem em mim isolados, e em todos os meus juízos sobre a ciência, o teatro, a literatura, os alunos, em todos os quadrinhos que desenha a minha imaginação, mesmo o analista mais hábil não encontrará o que se chama uma ideia geral, isto é, o deus do homem vivo.
E, se não existe isso, quer dizer que não existe nada.
Com semelhança indigência, bastaram uma doença séria, o medo da morte, a ação de circunstâncias e das pessoas, para que tudo o que eu considerava antes a minha concepção do mundo e em que eu via o sentido e a alegria da minha vida se emborcasse e desfizesse em fiapos. Por conseguinte, não há nada de surpreendente no fato de eu ter ensombrecido os meses derradeiros da minha vida com pensamentos e sentimentos dignos de um escravo e bárbaro, que eu seja agora indiferente e não note o amanhecer. Quando não existe num homem aquilo que é superior e mais forte que todas as influências externas, realmente, basta-lhe um forte resfriado para que perca o equilíbrio e comece a ver em cada ave uma coruja, e ouça em cada som um uivar de cães.
Estou vencido. Se assim é, não há motivo para continuar a pensar, para conversar. Ficarei sentado, esperando em silêncio o que há de acontecer“.
(Anton TCHEKHOV- Trecho do Conto “Uma História Enfadonha”. Publicado em 1889).

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