“...
Estávamos em guerra contra antigos aliados, povos vizinhos. Estávamos em guerra contra nós mesmos. Matávamos e morríamos. Estávamos exaustos, exauridos por uma guerra sangrenta, cruel, insignificante. Não conseguimos e nem conseguiremos a paz a partir destes conflitos. Ao final de mais um dia, estávamos mortos e tensos, por ataques constantes do incansável inimigo. O som dos combates sob o mais terrível canto, como de uma águia sombria e soberana que pousava sobre as intensas e sonoras bombas de ódio. Nas montanhas, eram, sobretudo, o frio e a neblina que transformavam as nossas vidas em um jardim fantasmagórico real, sendo que, a qualquer segundo ia pelos ares ou para o chão.
Neste horror de fazenda, os homens estão expostos aos seus piores medos e ao total desapego, de tudo. Já nem importaria se morresse ou não, aquilo já o fez morrer entende?
- Alegrias?
(Risos)
- Apenas uma: A música de Sachka - El Cervecero.
A cada dia, a música de Sachka nos impermeava daquilo que a guerra faz com os homens: Desumanizá-los. A música de Sachka era um ritual sob um dia de confrontos. Por horas, tinha-se de fundo – às vezes um pouco mais alto (nas vitórias) e mais baixo (nas tristezas); o som das canções da pequena sanfona do velho Sachka. Fazia dela a soberana sob o clamor perturbador dos feridos e o silêncio gélido das emboscadas. Sachka também cantava. As canções continham poucas letras e eram mais instrumentais. No entanto, as letras das canções nos talhavam por dentro, como se algo estivesse rasgando nosso estômago e rins. Diria que haveriam muitas. A voz de Sachka era curtida de cigarro e conhaque.
Era ele quem dava o sinal de ataque, sempre a mesma, chamada por ele de “Sinfonia da Vida” e dizia palavras proféticas e poéticas sob a guarda e nós, considerado por ele, como “O Batalhão dos incansáveis”, cantava-a:
“...Somos homens guerreiros
Da cavalaria dos verdadeiros
Da 7ª em Despedida, não temos medo
Este batalhão vai pegar teu coração sem covardia
e Sachka, o Cervecero, decretará o sessar fogo até amanhã cedo"
Este batalhão vai pegar teu coração sem covardia
e Sachka, o Cervecero, decretará o sessar fogo até amanhã cedo"
(Relembrava frases de escritores e poetas russos nesta sinfonia)
“O inimigo vai ter a cabeça cortada
Um sol alaranjado rola pelo céu como uma cabeça decepada¹”
sigam homens: Sofrer ainda é viver²
Os meninos brincam da mais terrível e adulta de todas as brincadeiras; brincam de guerra³"
sigam homens: Sofrer ainda é viver²
Os meninos brincam da mais terrível e adulta de todas as brincadeiras; brincam de guerra³"
Logo após, o batalhão partia, como uma fera faminta em busca de suas presas. Queríamos modificar o inimigo. Nunca seríamos de novo aquilo que fomos. Pudera. Assim é a vida. Mas, com a guerra, se vê do que o ser humano é capaz. Conhecemos aqui a essência do ser brutal e sublime. Não há limites para os excessos.
E sachka cantava:
“...Almazinha, coma por favor, tire da vida uma alegria. Eu sei que tem visto muito horror, mas se encontrar com uma flor, não a pise. Deixe ela sozinha” (1ª Melodia da Flor)
Após os términos das batalhas e confrontos, Sachka, caminhava e retornava do início até o fim da linha dos corpos, numa canção estranha, de uma nota só e que se repetia freneticamente, cantando uma única frase: “Vá em paz, acabou a guerra” e dava uns ganidos sonoros de dentro sem abrir a boca, como se estivesse desintoxicando-se de cigarro e de cinzas. Estávamos unidos para sempre naquele ambiente. E para que a vida continuasse, seria preciso que a guerra continuasse. Já não questionávamos os bandidos da nação, que deveriam estar aqui, o valor e a justificativa desta ou de outra guerra. Justificativas são vãs.
Após o pouco tempo, se é que era pouco tempo, tínhamos o exercício de pensar o próprio tempo, de pensar sobre o quê das coisas, pra que, pra quem, contra quem e a favor de alguns. E estas coisas são fundamentais. Eram as nossas exigências, são as exigências do homem frente aos desafios de todo tempo.
Todas as noites, Sachka, antes da madrugada, quando não éramos atacados ou atacávamos; cantava e tocava várias cantigas populares e de povos rurais de sua região.
Precisávamos das Canções: Ninguém naquela época via o fim daquela guerra, somente Sachka, o Cervecero; cobria de sons e lágrimas nossos extenuantes caminhos. Dava-nos um rápido momento de esquecimento e das lembranças de uma carnificina, para podermos, mesmo que brevemente, cochilar em meio aos corpos e a terra coberta de sangue. Só ele, Sachka, o memorável, o pinguço engraçado, filósofo de trombeta, cantor do esquadrão, poeta do mar do inferno, voz de sábio errante, luz de centelha; será capaz de contar com detalhes o terror de um assassinato em massa e ainda, mesmo diante de tudo e de todos, procurar o horizonte mais distante e avistar alguma coisa lá que faça agora, no presente, total sentido.
Precisamos das canções sempre. Para celebrar e sofrer. Precisávamos de Sachka e ele não estava maduro para morrer.
Precisamos das canções sempre. Para celebrar e sofrer. Precisávamos de Sachka e ele não estava maduro para morrer.
³ Boris Pasternak - Doutor Jivago
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