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8 de jun. de 2011

Queima de Partida

Imagem: Futebol. BRANDÃO, S.


Jogo de Futebol. Um domingo santo em que todos aqueles homens do campo não viam muitas coisas a perder, por isso eram tão entregues a partida. Naquele horário, sob sol e chuva (mais com sol), correndo atrás de uma bola de material sintético e gasta que “sintetizava” a vida deles.

O bairro do clássico ou da tragédia é aquele bairro que existe em toda ordem e cidade: Bairro da Esperança. Nome do lugar envolto em uma ambiente fervoroso de desilusão e perigo. Nestes lugares, não só a comida dos gatos, mas também dos homens, devem ser caçadas a noite.
O jogo é tenso. Ninguém levava desaforo do futebol, isso nunca. Lá é livre. Na rua ou no trabalho a manha é diferente. Um drible debaixo da perna é humilhação, você sabe. Mais uma?
Diante desta ruína chamada de liberdade e desta cultura de sangue em que os titulares e reservas de banco respiram e estão lá embaixo, o jogo se mostra algo mais.
O juiz é o louco do Sinval. Ninguém é doido de xingar a mãe dele. Desconfiam dele, na morte da pobre mulher. Além do mais, Sinval é o homem das bocas que levam ao Rio Tejo, ouro que atrai bandidos mais bem vestidos da região.
O campo duro de terra, sem única grama, levanta poeira que impregna nos copos e peles, um cheiro infernal de carne assada e de álcool puro vinha por toda parte. Em volta daquela beirada da cidade, entre casebres pobres e córrego sujo, com o campo cercado por arame farpado, começava o maior clássico das mulas, a invenção de uma obra de arte, a maior guerra entre os destratados da vida, o ruir da salvação, o fatal tropeço da dignidade, a barbárie de nossas colheitas e a diversão daqueles que não são.
Todos sabiam que era preciso muito mais que um gol para se destacar na comunidade e apenas um para morrer no campo. Definitivamente, os homens não sabem conter as palavras. O coração, em perturbo, é um tsunami de emoções.
Oscarito, comerciante de um piseiro, após o fim da partida disse aos presentes:
“ No fundo, mesmo que a gente fique com a cabeça dentro do jogo, a gente nunca sabe o que o outro pensa e o que é capaz de fazer. O que ele traz de casa e da vida. O que fez de tão grave para ser morador do Esperança...”
Bem, vamos a partida...
Como sempre o encontro entre os herdeiros do Bairro Esperança é  um jogo ruim de ver pelo futebol e atraente por outras atitudes realizadas no local.Entretanto, pelos próprios jogadores em campo, tudo poderia acontecer.
O goleiro Manuel, conhecido como Bordado (Já levou tiro da polícia e tal...), gosta de jogar provocando os jogadores adversários. Aborrecendo-os com estórias fantasiosas de parentes distantes dos mesmos (todos sabiam que em parte era invenção) e se contorcia de risadas doentias ao fim de uma jogada ridícula ou de uma chance perdida, como se estivesse narrando o próprio jogo a partir de um picadeiro.
Já no segundo tempo, com jogo empatado sem marcador, o time do atacante Mário Moleque, parte em contra-ataque, como se estivesse atacando americanos no Iraque, três contra seis. Como se torna fácil a desatenção! Não se põe a mão no berço de cobra!
Sem milagres, não haveria o que fazer: o atacante venceria o goleiro no jogo e o tempo venceria o homem na marcação.
Ao chegar cara a cara e driblar Bordado, empurrando a bola para dentro do gol, Mário olha para o mesmo e sopra bem alto:
- Chupa Puta!
Os olhos de Bordado ficaram vermelhos; seu rosto estático, seus dedos da mão direita levemente se movimentavam e se tocavam, ele olhava indiferente para os companheiros de time e via com uma atenção felina a comemoração dos rivais e, em especial, Mário. Não se sabia se havia rixas entre os dois.
Rubão, o Ceilão, grita da arquibancada:

- Achou Bordado! Cadê a narração do gol seu palhaço?
- Te chamou de Puta e não faz nada...é porque gostou?

Após o gol, o time em vantagem partiu para o ataque e quase marcou novamente. No cruzamento, bordado se esticou e se atirou praticamente no pé do adversário. Não se sabe se planejado ou não, ele saiu de campo machucado.
Faltavam 10 minutos para terminar a partida. São 10 horas da manhã de uma tarde. São 10 homens em campo sem amar o presente. São 10 urubus mecânicos correndo atrás sempre. São 10 milhões de campos como este.
Bordado não espera o fim do jogo. Vai a sua casa, pega o seu revólver e volta ao campo. Enquanto os jogadores tentavam o empate, ele entra no campo de terra, caminhando a passos lentos, fumando um cigarro boliviano, com os mesmos olhos vermelhos, e, no grande centro, onde só havia o herói inimigo, exige que o mesmo se ajoelhe, sem dizer uma única palavra, no local onde é dado o primeiro toque na bola, dá um tiro à queima roupa na cabeça de Mário.
(Leo   Canaã)

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